Os 25 anos da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
[Ecodebate] A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) ocorrida na cidade do Cairo, Egito, entre os dias 5 a 13 de setembro de 1994, completa 25 anos neste mês de setembro de 2019.
A CIPD do Cairo aprovou um Plano de Ação de 20 anos que representou uma mudança de paradigma em respeito ao debate populacional, à relação entre população e desenvolvimento e às políticas populacionais. Nas duas conferências mundiais anteriores sobre população e desenvolvimento, organizadas pela ONU – Bucareste (1974) e Cidade do México (1984) – ocorreram confrontos entre visões diferentes sobre como tratar a população no processo de desenvolvimento. Alguns atores argumentavam que a redução do crescimento populacional era essencial para o desenvolvimento, enquanto outros argumentavam que “o desenvolvimento é o melhor contraceptivo”.
Na CIPD de 1994, de certa forma, o debate entre controlistas e natalistas foi superado (mas não eliminado), sendo que o enfoque demográfico das políticas foi relativizado em favor das premissas dos direitos humanos, bem-estar social e igualdade entre os gêneros, com uma ênfase especial na saúde e nos direitos sexuais e reprodutivos. Certamente o fim da Guerra Fria ajudou a criar um clima propício para o “Consenso do Cairo”, que tem como base uma visão desenvolvimentista, com ênfase nos direitos humanos.
A CIPD de 1994 colocou a meta de universalização da saúde sexual e reprodutiva. Porém, mesmo depois de 20 anos, o o aos métodos de regulação da fecundidade continua como uma demanda insatisfeita. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, no mundo, existem mais de 225 milhões de mulheres em período reprodutivo sem o aos métodos de regulação da fecundidade. Contrariando as metas dos direitos reprodutivos, o número de gravidez indesejada permanece elevado.
Reforçando o estabelecido na CIPD, a meta # 5B dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) dizia: “Alcançar, até 2015, o o universal à saúde reprodutiva”. Esta meta não foi alcançada. Agora, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) também colocam como meta a universalização dos serviços de saúde sexual e reprodutiva até 2030. Evidentemente, esta procrastinação não é boa para a saúde das mulheres e nem para os bebês que nascem de uma gravidez indesejada e vão correr riscos cada vez maiores diante dos desafios econômicos, sociais e ambientais. Por exemplo, o surto dos casos de microcefalia no Brasil, diante da epidemia de Zika, poderia ser evitado se houvesse bons serviços de saúde reprodutiva no país.
Além dos direitos reprodutivos, o Programa de Ação (PA) da CIPD, em seu preâmbulo, definiu a linha de ação geral com base na interdependência de três grandes temas: 1) População; 2) Desenvolvimento e 3) Sustentabilidade ambiental. Um dos pontos centrais do PA da CIPD é a recomendação para os países adotarem políticas públicas no sentido de promover o “crescimento econômico sustentado no contexto de um desenvolvimento sustentável”.
Porém, o sonho de um crescimento econômico contínuo (sustentado) e sustentável em termos ambientais virou um pesadelo. A população mundial que era de 5,66 bilhões em 1994, aumentou em mais de 2 bilhões de habitantes e chegou a 7,71 bilhões em 2019 (aumento de 36%). O Produto Interno Bruto (PIB) global, em dólares correntes, ou de US$ 27,8 trilhões em 1994 para US$ 87,3 trilhões em 2019.
O resultado deste elevado crescimento demoeconômico foi a ampliação do déficit ambiental. Para uma biocapacidade em torno de 12 bilhões de hectares globais (gha), a Pegada Ecológica global ou de 14,4 bilhões de gha em 1994 para 20,5 bilhões de gha em 2016. Ou seja, a humanidade já consumia, em 2016, cerca de 1,7 planeta (70% a mais do que a capacidade de regeneração da Terra). E o déficit ambiental está aumentando ano a ano e o Dia da Sobrecarga acontece cada vez mais cedo.
O aquecimento global tem aumentado de maneira assustadora e pode atingir o ponto de não retorno. Segundo a NASA, o aquecimento médio do Planeta, em 1994, foi de 0,35º C acima da média do século XXI, ando para cerca de 0,95º C em 2019. Um aumento de 0,6º C em 25 anos, o que daria um aumento de mais de 2º C (meta máxima do Acordo de Paris) em um século.
O relatório “Climate Change and Land”, do Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, publicado dia 08 de agosto de 2019, mostra que o crescimento da população mundial e o aumento do consumo per capita de alimentos têm causado taxas sem precedentes de uso de terra e água doce. O aumento da produção e consumo de alimentos contribuíram para o aumento das emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEE), perda de ecossistemas naturais, desmatamento e diminuição da biodiversidade. E as mudanças climáticas ameaçam a produção de comida. A insegurança alimentar e a crise hídrica são espectros que já assustam o século XXI.
A crise ecológica se agrava de maneira dramática. Como disse o jornalista David Wallace-Wells (09/07/2017): “Na ausência de um ajuste significativo da maneira como bilhões de seres humanos vivem, partes da Terra provavelmente se tornarão próximas a inabitáveis e outras partes terrivelmente inóspitas, antes do final deste século”. A adolescente Greta Thunberg disse: “Eu não quero que vocês estejam esperançosos. Eu quero que vocês estejam em pânico. Quero que vocês ajam como se a casa estivesse pegando fogo. Porque está!”.
Estudo do Centro Nacional Breakthrough para a Restauração do Clima, um centro de inteligência, em Melbourne, Austrália, descreve as mudanças climáticas como “uma ameaça existencial de médio prazo à civilização humana”. Na atual trajetória, adverte o relatório: “os sistemas planetário e humano devem atingir um ‘ponto de não retorno’ até meados do século, no qual a perspectiva de uma Terra praticamente inabitável leva ao colapso das nações e da ordem internacional.
Desta forma, percebe-se que o objetivo da CIPD de obter “crescimento econômico sustentado no contexto de um desenvolvimento sustentável” não se concretizou, pois ao invés de levar a Terra ao paraíso (i.e. a humanidade em harmonia com a natureza), está levando rumo ao inferno (i.e. temperaturas elevadas com ondas intensas de calor, com acidificação dos solos e das águas e agravamento de fenômenos naturais extremos como furacões, inundações, secas, etc.).
A CIPD do Cairo teve um papel importante no sentido de incentivar a prática dos direitos humanos na área reprodutiva. Mas as conquistas nesta área foram parciais, já que o número de gravidez indesejada no mundo é muito alto. Nos temas de população e desenvolvimento sustentável o Programa de Ação (PA) da CIPD cometeu o equívoco de não questionar o “crescimento demoeconômico”.
Atualmente, o PA já está superado pela Agenda 2030 da ONU (Acordo de Paris, Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FpD3), em Addis Abeba e Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS) que comete os mesmos erros de não questionar o “crescimento demoeconômico”.
Na verdade, a própria Agenda 2030, acordada no aniversário dos 70 anos da ONU (em 2015), também já está ultraada pela emergência climática que ameaça a existência da humanidade e a maior parte da vida na Terra, em decorrência da possibilidade, cada vez mais provável, de uma catástrofe climática e ambiental (ALVES, 2015).
O “desenvolvimento sustentável” virou um oximoro e o mundo do século XXI será assombrado pelo envelhecimento populacional, pela estagnação secular e pela catástrofe ecológica. A governança global está em crise e as soluções proposta pelos governos e pelas agências multilaterais nem de longe dão conta da dimensão dos problemas sociais, econômicos e ambientais da contemporalidade. O tripé da sustentabilidade virou um trilema (Martine e Alves, 2015).
Talvez o mundo possa aproveitar os 25 anos da CIPD do Cairo para repensar a urgência da crise ambiental e civilizacional. Seria preciso pensar de forma holística e entender que o modelo de desenvolvimento adotado desde o início da Revolução Industrial e Energética promoveu o enriquecimento humano às custas do empobrecimento dos ecossistemas.
Todavia, sem base ECOlógica não há como manter a ECOnomia. A riqueza das nações não pode ocorrer às custas da pobreza da natureza. No padrão de produção e consumo da sociedade urbano-industrial, o progresso está levando a civilização para a beira de um precipício ambiental. Nos 25 anos da CIPD do Cairo é preciso repensar os danos ambientais gerados pelo crescimento demoeconômico e como a degradação ecológica vai reverberar sobre o próprio estilo de civilização.
Como bem notou a adolescente Mary Shelley, em 1818, a racionalidade humana pariu um monstro. O desenvolvimento econômico tem gerado crescentes externalidades negativas e criado um fosso entre a humanidade e a natureza. O Frankenstein é a metáfora do Antropoceno.
José Eustáquio Diniz Alves
Colunista do EcoDebate.
Doutor em demografia, link do CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
ALVES, JED. Os 70 anos da ONU e a agenda global para o segundo quindênio (2015-2030) do século XXI. Revista Brasileira de Estudos de População (Impresso). v.3, p.587 – 598, 2015.
http://www.scielo.br/pdf/rbepop/v32n3/0102-3098-rbepop-32-03-0587.pdf
MARTINE, G., ALVES, JED. Economia, sociedade e meio ambiente no século 21: tripé ou trilema da sustentabilidade? Revista Brasileira de Estudos de População. v.3, p. 1 – 31, 2015.
http://www.scielo.br/pdf/rbepop/v32n3/0102-3098-rbepop-S0102-3098201500000027P.pdf
MARTINE, G. ALVES, JED. “Disarray in Global Governance and Climate Change Chaos”, R. bras. Est. Pop., v.36, 1-30, e0075, 2019 https://www.rebep.org.br/revista/article/view/1317/1001
Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), do Cairo, 5-13/09/1994 http://www.spm.gov.br/Articulacao/articulacao-internacional/relatorio-cairo.pdf
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 04/09/2019
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