Nosso antropocentrismo dominador deixou o mundo adoecido
Nosso antropocentrismo dominador deixou o mundo adoecido, artigo de Marcus Eduardo de Oliveira
Numa situação em que o consumo global de recursos ultraa a capacidade de regeneração do planeta, só podem surgir “danos ecológicos induzidos pela dinâmica capitalista”
“Ao final, a destruição da biodiversidade
é também a destruição da economia e da sociedade”.
(Giorgios Kallis, promotor do movimento Degrowth)
Movida pelo incessante desejo de consumo material, ninguém mais coloca em dúvida que a sociedade humana, a par de um modelo econômico que claramente se tornou disfuncional, tem afetado a vida na Terra, comprometendo o metabolismo global.
Síntese mais expressiva, nosso antropocentrismo dominador vem desafiando os limites seguros dos sistemas naturais, deixando o mundo muito mais adoecido, ecologicamente falando. E não é difícil entender o motivo principal: por conta direta da exploração da natureza e dos recursos naturais, seja dito, da mercantilização dos bens da natureza, limites planetários, definidos como sistema de e de vida da Terra, têm sido ultraados.
Nessa mesma perspectiva, habitats do planeta têm sido bastante degradados. Biomas são constantemente pressionados, nascentes contaminadas e florestas, com velocidade inédita e assustadora, são derrubadas pelo crime organizado. A lógica capitalista na Amazônia (exploração num termo direto), no mais importante ecossistema do planeta, na maior floresta tropical em biodiversidade, que o diga.
De maneira simplificada, pode-se dizer ainda que na interação com a diversidade do mundo natural, desde que nossa civilização ou a ser regida por variados interesses econômicos, jamais havíamos desenvolvido a capacidade de romper limites, afetar a resiliência dos ecossistemas conhecidos, devastar o patrimônio genético e biológico e assim, modo direto, comprometer os sistemas de e da vida.
Agora, mais além, o conhecimento científico confirma que estamos rompendo o equilíbrio climático. Pesa-nos itir: perdemos o controle. Nada escapa à dominação antropocêntrica. E aqui, desde tempos não muito distantes aos dias atuais, vale lembrar: desde 2009, o mundo já perdeu aproximadamente 14% dos corais.1 Em apenas 50 anos, da metade do século ado até o ano 2000, foram destruídas mais florestas do que em toda a história de evolução da humanidade. A cada ano, segundo a organização Humane Society International (HSI), nós, humanos, devoramos 88 bilhões de animais (onze vezes a população humana global). Todos os dias, no planeta inteiro, “transformamos em bifes” nada menos que 35 mil bois.
Seja como for, está bem claro, portanto, que a redução e o desaparecimento da diversidade biológica nos condenam, ética e moralmente. Sobram exemplos: no mundo das águas, contaminamos as nascentes e, agora mesmo, assistimos as camadas de gelo da Antártica derreterem seis vezes mais rápido do que há 40 anos. Alheios à preocupação ecológica, poluímos com incrível facilidade os oceanos, o maior ecossistema conhecido. Todos os anos, inaceitavelmente, mandamos 14 milhões de toneladas de plástico para as águas oceânicas (sempre uma boa aliada da Terra na indispensável tarefa de manter o equilíbrio climático), ameaçando assim a rica vida marinha.
No ambiente terrestre, o solo que nos dá o alimento nunca, antes, havia recebido quantidade excessiva de substâncias químicas, principalmente nutrientes em forma de nitrogênio. Calcula-se que o mundo todo esteja usando nos dias de hoje aproximadamente 2,5 milhões de toneladas de agrotóxicos. E isso se repete ano após ano. Ainda assim, é possível observar que cada vez mais a agricultura globalizada e industrial, afiançada pelos interesses do grande capital, vem nos entregando adversidades que afetam a saúde humana.
Como bem lembrou a ecofeminista e física indiana Vandana Shiva, “75% da destruição do planeta procede de um sistema que nos traz 25% dos alimentos”.2
No fundo, detalhe pernicioso, não é difícil presumir que essa Era do Antropoceno – com o pendor de aprofundar desajustes planetários e deixar o clima em transe – dá lugar ao florescimento de consistentes problemas socioambientais, e todos com consequências globais. A começar com uma previsão sinistra: até 2100, 50% de todas as espécies podem ser extintas, apesar de a biodiversidade, produto de mais de 3,5 bilhões de anos de evolução, ser essencial para a produção do ciclo de vida.
E tem mais. Atualmente, mais de 95% da população mundial respira um ar que não é seguro, conforme as medições dos Padrões de Qualidade do Ar da Organização Mundial de Saúde (OMS). Ar poluído, todos imaginam com suficiente clareza, é sinônimo de morte. Escutando os sinais do tempo, a conta final aqui, não duvidemos, causa perplexidade: são mais de 7 milhões de óbitos (prematuros) todos os anos no mundo, ou 15 mil mortes por dia.
Conceito aberto, foi constatado que três quartos do ambiente terrestre e 66% do ambiente marinho sofreram severas modificações nos tempos recentes. Ainda hoje, mais de 20% das terras produtivas do mundo estão degradadas. Existem mais de 500 zonas litorâneas mortas devido a poluição marinha. E mais de 200 milhões de pessoas em todo o mundo, aqui, ali e acolá, continuam expostas à poluição tóxica (metais pesados, pesticidas e até mesmo substâncias radioativas).
Longe de se radicalizar a questão-central, não se pode perder de vista que, se não houver mudança de rota, ondas de calor extremo e de inundações (tempestades severas) irão se multiplicar com certa frequência, assim como secas prolongadas que hoje em dia castigam inclementemente algumas das partes do mundo, tendem a se acentuarem.
Na dúvida, vale recorrer ao estudo publicado recentemente (julho de 2022) na revista Nature Medicine que aponta que as ondas de calor extremo na Europa podem ter causado a morte de mais de 61 mil pessoas, entre o fim de maio e o início de setembro de 2022. Os idosos, especialmente com mais de 80 anos, continuam compondo o grupo dos mais vulneráveis.
Resultado do encontro do inequívoco desequilíbrio da cadeia ecológica que rege a vida na Terra com a severa desestabilização da integridade dos ecossistemas, impactando a sustentabilidade do planeta e marcando a ruptura entre humanidade e natureza, o mal-estar socioambiental se generaliza de vez e deixa o sistema-vida parecendo valor dispensável.
Esse mal-estar civilizacional se amplifica porque, em termos de escala de uso de recursos da natureza para consagrar a prosperidade material sem fim, ergue-se de vez um mundo econômico de produção insustentável baseado na mais agressiva degeneração da natureza.
Complicador à parte, enquanto alguns ainda esperam a resolução na saída tecnológica, consolida-se diante de nós a mais intensiva destruição de tudo o que mais dependemos para sobreviver, o e ecológico. E como a economia de produção não leva em conta a restrição ecológica, fica claro, assim, que na base disso tudo está a acentuada redução de ecossistemas e a proximidade do esgotamento de biomas.
Frente a multiplicidade dos interesses capitalistas, tudo indica que a situação vai piorar. Contas feitas, se considerarmos a projeção da Rede Global da Pegada Ecológica, em 2030 a economia global provavelmente operará a 200% da capacidade ecológica. Resumidamente, isso equivale a dois planetas. Possível? É claro que não.
Fiel às evidências, Noam Chomsky, observando de perto o aumento da pressão humana sobre o meio ambiente, combinado à emergência climática, levanta uma sentença emblemática: “a corrida rumo à autodestruição se acelera”.3
Ponto decisivo, ao combinar-se atividades insustentáveis com o atual modelo econômico que não leva em conta as questões ambientais e muito menos as transformações climáticas, percebemo-nos numa encruzilhada. Vale advertir: agora mesmo, a sociedade humana, ironia à parte, se vê na posição de confrontar aquilo que nós mesmos criamos.
Sem ambiguidades, note-se que a lógica que emerge daí é velha conhecida: partindo de declarados interesses dos donos do poder (na expressão consagrada por Raymundo Faoro), sabotadores da causa ecológica e avessos à sociedade participativa, mantém-se o dinamismo da economia, alia-se a prosperidade ao crescimento e estimula-se numa sociedade ativa o modelo de produção de vida capitalista com o qual uma minoria privilegiada busca, hoje, amanhã e sempre, o “bem-estar infinito”, como gosta de dizer em tom de crítica o filósofo italiano Gianni Vattimo.
Tal lógica, cada um sabe, ganha sobrevida porque a sociedade contemporânea percebe o alcance da felicidade medida pela posse (e o) de bens. É a consagração do reino da necessidade, ideologia do consumo que consome o consumidor. Sem dúvidas, uma visão de todo relacionada ao desempenho econômico.
Aos interesses capitalistas, é claro, isso é o mais interessa. E isso é tão dominante e influente na composição da vida social que já virou razão do mundo.
Em termos concretos, ao capital, que violenta o compromisso ecológico e alimenta complexos conflitos surgidos da relação contraditória entre crescimento econômico e proteção ambiental, pouco importa valores definidores com os quais deveríamos pautar o futuro da vida, tais como, sustentabilidade ambiental, vitalidade dos ecossistemas, conservação da diversidade e mesmo a construção de uma sociedade que respeite o mundo biofísico.
Muito comum, a verdade, todavia, é que alimentamos a grande dívida ecológica (maior desmatamento, mais produção de resíduos, mais emissões de poluentes industriais, pegada ecológica) contraída sobretudo para manter o modelo produtivista e consumista do capitalismo.
Como se pode ver, numa situação em que o consumo global de recursos ultraa a capacidade de regeneração do planeta, só podem surgir “danos ecológicos induzidos pela dinâmica capitalista”, como tão bem ensina Joan Martinez-Alier.
Assim sendo, a agem a seguir é ilustrativa: até 2040, sinaliza relatório do Internal Displacement Monitoring Centre, o mundo conhecerá 200 milhões de refugiados do clima. Preocupação crescente, a massa de afetados, evidentemente, será toda ela de habitantes de países pobres. Muito antes dessa data, talvez para o ano de 2025, os especialistas em gestão pública não cansam de afirmar que quase metade da população mundial (estima-se em cinco bilhões de pessoas) ará por pelo menos um dia da semana por falta d´água.
De fato, segundo o Programa Conjunto de Monitorização da OMS/UNICEF para o Abastecimento de Água e Saneamento, pelo menos 1,8 milhão de pessoas em todo o mundo, agora mesmo, continuam bebendo água que não está protegida contra a contaminação das fezes.
De todo modo, nesse mundo adoecido também pelos conflitos sociais, ao contrário do que diz a dominante ideologia do capitalismo que flerta com o esgotamento da natureza e é incapaz de priorizar a vida, é razoável supor que o atual modo econômico global, longe de favorecer a regeneração dos recursos, se tornou ferrenho adversário do clima equilibrado. E isso precisa ser devidamente combatido.
Seja dito: no jogo da vida, e não há tempo a perder, vencer esse adversário se tornou uma necessidade em nível planetário; quiçá a mais proativa resposta à crise ecológica.
Fechando o assunto, como temos urgência de reorientar nossos modos de vida e de reorganizar a economia para ser sustentável em termos globais (isto é, com baixa intensidade de carbono), recordemos agora a sentença anunciada tempos atrás pelo filósofo austro-francês André Gorz (1923-2007) que conforma consistente crítica à civilização industrial: “Nós sabemos que o nosso modo de vida não tem futuro”.4
MARCUS EDUARDO DE OLIVEIRA é economista e ativista ambiental.
Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo – USP (2005). Autor de Economia Destrutiva (CRV, 2017) e Civilização em Desajuste com os Limites Planetários (CRV, 2018), entre outros.
Notas:
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Disponível em < https://www.unep.org/pt-br/noticias-e-reportagens/comunicado-de-imprensa/o-planeta-perdeu-14-de-seus-corais-desde-2009-devido>
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Disponível em: <https://www.brasilecodebate-br.diariomineiro.net.br/2018/04/27/vandana-shiva-a-comida-e-o-maior-problema-de-saude-que-ha-no-mundo>
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Cf. Noam Chomsky & Robert Pollin, Crise climática e o Green New Deal Global. Rio de Janeiro: Roça Nova, 2020, p.17.
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Cf. Andre Gor. Ecologie et politique. Paris: Editions du Seuil, 1978.
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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