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Violência durante a infância contribui para violência na fase adulta

 

 

Violência durante a infância contribui para violência na fase adulta

A constante exposição à violência urbana durante a infância e a adolescência contribui para a reprodução da violência na fase adulta, inclusive doméstica e de gênero.

É o que conclui o estudo Masculinidade e Não Violência no Rio de Janeiro, publicado ontem (19) pelo Instituto Promundo em parceria com o programa Global Safe and Inclusive Cities (Cidades Seguras e Inclusivas, em tradução literal).

Foram entrevistadas 1.151 pessoas entre 2013 e 2016, de 18 a 59 anos, em duas áreas da cidade do Rio de Janeiro: a sul, onde as taxas de homicídio são mais reduzidas, e a norte, onde essas taxas são mais elevadas. Na etapa qualitativa foram feitas 56 entrevistas com homens e familiares, de 18 a 56 anos, que tomaram trajetórias de não violência, incluindo ex-traficantes, policiais, ativistas e as respectivas parceiras.

A violência dentro de casa aparece no estudo como fator crucial para a perpetração da violência na fase adulta. Mais de 64% dos homens que declararam ter sido expostos à violência doméstica durante a infância tinham praticado violência nas relações íntimas, 70% tinham praticado violência física na rua e quase 30% haviam feito uso de violência sexual. As entrevistadas expostas à violência doméstica eram significativamente mais propensas a usar a violência urbana física e verbal em alguma ocasião, aponta a pesquisa.

Mais de 80% dos homens haviam sofrido pelo menos duas situações de violência antes dos 18 anos. Na fase adulta, o uso da violência urbana foi cometido pela maioria: cerca de 65% dos homens da região sul e 57,3% da norte. A violência contra parceiras íntimas, violência sexual e pública foram mais praticadas nos bairros com maiores índices de homicídio. Mais de 46% dos homens que moravam na região norte e 38,7% dos que moravam na região sul relataram ter usado violência contra pessoas íntimas. Na zona norte, 17% dos homens relataram ter perpetrado violência sexual contra uma mulher que não a sua parceira. Na zona sul esse percentual foi 9,2%.

Trajetórias de não violência

Um dos entrevistados, o ativista Jailson de Souza e Silva, fundador do Observatório de Favelas, disse que ele e os quatro irmãos conseguiram romper com a violência vivida em casa. “Meu pai quando bebia era muito agressivo, violento. Era militar e só andava com revolver e punhal. A resposta de todos nós foi de romper com essa trajetória de violência, somo cinco homens muito pacíficos”, disse. “Agora, éramos uma família muito unida, estruturada. Minha mãe, tia e avó souberam lidar com essa situação [de violência] de uma forma não violenta. Nasci em favela, mas quando era garoto, na década de 1960, Mangueirinha [zona norte], não era um espaço marcado pela violência e isso faz diferença”.

Para Jailson, a naturalização da violência nas favelas, com altos números de violência, contribui para  reproduzir e reforçar a violência dentro e fora de casa. “Muitas ambiente naturaliza determinadas manifestações agressivas, as pessoas acabam incorporando-a achando que aquilo faz parte do cotidiano. O machismo, preconceito contra nordestinos, racismo são outras formas de violência naturalizadas em alguns territórios”.

Violência e Tráfico

A vulnerabilidade e a precariedade da infância, bem como situações de violência que sofreram, eram os elementos chave que explicaram a entrada do tráfico na vida dos entrevistados. Um dos entrevistados, não identificado por motivos de segurança, contou que a perda dos pais foi fundamental para a entrada no tráfico. “Com 11 anos perdi minha mãe, com uns 14 ou 15 perdi o meu pai, daí já conheci o tráfico. Já influência de estar fumando maconha, de estar com certos amigos entre aspas. Aí meu pai morreu e eu fui indo, indo, indo, indo e quando eu fui ver eu estava envolvido. Sem pai, sem mãe, sem trabalho, o jeito era ir para o tráfico”.

Um morador da favela do Vidigal, zona sul, descreveu como as crianças são seduzidas pelo tráfico devido à proximidade com os adultos envolvidos no crime. “Você está ali, conversando, jogando bolinha de gude ou soltando pipa, ou qualquer outra coisa, com um monte de moleques. Aí a aquele bonde de 40 cabeças, com fuzis para o alto, com muito dinheiro. ‘E aí, vai ali comprar uma pizza pra gente’, ‘O troco é seu.’ Pronto, você ganhou o moleque”, disse o entrevistado. “Uma vez ou outra, ‘qual é? Quer dar um tiro?’, ‘não’, ‘quer dar um tiro?’, Aí você, pá, pá, pá. Pô, é emocionante. Qualquer criança, você se sente o Rambo. Esse bandido também é vitima e um dia fizeram isso com ele”.

Morador do Complexo da Maré, identificado como H, de 23 anos, falou do fascínio que filhos de traficantes exerciam por terem o que a maioria dos meninos da comunidade não tinha. “A gente para poder ter umas dez bolinhas de gude, a gente tinha que ficar uma semana pedindo bolinha de gude emprestada para tentar jogar e conquistar as outras. Os moleques chegavam com garrafas de bolinha de gude”, lembrou. “’Está com uma garrafa de bolinha de gude! Ele é filho de ciclano, é irmão de ciclano’. Claro um moleque de 7, 10 anos, com uma garrafa de bolinha de gude ele é o bam-bam-bam”.

A paternidade surgiu como fator central de mudança dos entrevistados que declararam ter seguido trajetória de não violência.  Outros fatores para a mudança citados foram: conexão a círculos de convivência ou apoio social, níveis de escolaridade dos homens foram alguns fatores citados para a mudança, entre outros. Os policiais entrevistados disseram que procuraram ajuda psicológica nos serviços de apoio da Polícia Militar.  Ex-traficantes entrevistados disseram que o movimento de mudança para atitudes não violentas foi influenciado pela ajuda de organizações não governamentais na assistência na saída do tráfico de drogas, por pressão ou apoio familiar para o abandono do tráfico ou por eventos e riscos traumáticos, como morte de amigos.

Uma das coordenadoras da pesquisa, Alice Taylor,  disse que uma das novidades do estudo é apontar casos de sucesso na prevenção, que combinam atividades socioeducativas e apoios psicológicos a homens jovens nos territórios marcados pela violência. “Muito se gasta com policiamento e políticas repressivas, mas são muito poucos os recursos para incentivar e apoiar as mediações de conflito entre jovens, ajudá-los a sair do tráfico, por exemplo. Há projetos no Brasil que oferecem a oportunidade de homens de falar sobre a violência sofrida na infância e na adolescência e muitos desses homens têm conseguido traçar uma trajetória de não violência ou de menos violência”, disse.

Alice também destacou a importância de se trabalhar nas escolas o questionamento das normas de gênero  que legitimam posturas violentas associadas à masculinidade. “Programas nesse sentido tem tido resultados positivos na diminuição de atitudes favoráveis a violências. Nossas experiências e diversas pesquisas mostram que é possível ”, disse. “Políticas sobre violência urbana e segurança pública geralmente têm relação com intervenções policiais e mais policiamento, que são importantes, mas precisamos olhar para além da polícia e promover estratégias mais eficazes”.

Por Flávia Villela, da Agência Brasil, in EcoDebate, 20/05/2016

 

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