‘Não sou um Dom Quixote, porque os meus moinhos de vento são reais’. Entrevista com Noam Chomsky
Avram Noam Chomsky (Filadélfia, 7 de dezembro de 1928). Foto da Wikipédia
Linguista revolucionário, ativista tenaz e sempiterno idealista, Noam Chomsky (Filadélfia, 1928) é um dos intelectuais norte-americanos mais conhecidos e prestigiados fora de seu país. Mas nos Estados Unidos apenas aqueles que estão vinculados aos círculos políticos de esquerda não descafeinados sabem seu nome.
E ele não se surpreende com isso: não por nada é o autor de livros como Os guardiões da liberdade. Nele, junto com Edward Herman, esmiuçou nos anos 1980 o modelo de propaganda que imperava nos grandes meios de comunicação norte-americanos, analisando como e por que determinadas informações e opiniões – como a sua – eram silenciadas sistematicamente. Agora, quando acaba de fazer 80 anos, chegam às livrarias espanholas um livro seu, Sobre o Anarquismo (Laetoli) e Entrevista a Noam Chomsky, de Vicenç Navarro (Anagrama).
Anarquista declarado e otimista o suficiente para continuar sua aposta num futuro em que o socialismo libertário volte a se tornar realidade, como aconteceu durante a Guerra Civil espanhola, ainda ocupa uma sala no MIT (Massachusetts Institute of Technology), onde foi professor de linguística desde os anos 1950. Oficialmente, aposentou-se no começo do século XXI, mas continua frequentando diariamente o prédio de formas sinuosas e cores fortes desenhado por Frank Gehry que abriga o Departamento de Filosofia e Linguística do MIT em Cambrigde (Massachusetts). Se poderia dizer que a sua iluminada sala cheia de livros e presidida pela enorme foto de Bertrand Russell, é sua segunda casa.
A outra parte da sua vida, a de ativista político, tampouco aponta para a aposentadoria. Depois de ter publicado dezenas de livros, a maioria para criticar a política exterior norte-americana, Chomsky segue escrevendo e andando pelo mundo dando conferências.
A omissão de Obama diante da invasão israelense de Gaza, a chuva de milhões para salvar os bancos de seu país ou o resultado das recentes eleições norte-americanas são temas que seguem fazendo pensar este octogenário sereno, que não aparenta sua idade e que recebe este jornal vestido de calça jeans e tênis.
Segue a entrevista que Noam Chomsky concedeu a Barbara Celis e está publicada no jornal espanhol El País, 02-03-2009. A tradução é do Cepat.
O modelo econômico da imprensa tradicional atravessa as suas horas mais baixas. Acredita que as mudanças em curso, motivadas em parte pelo peso que a internet tomou, favorecem a irrupção de grupos sociais com menos poder no âmbito da comunicação?
As fontes de informação ainda estão na imprensa tradicional. A internet te dá uma variedade maior de opiniões, mas se realmente queres saber os fatos, o que está acontecendo no mundo, as opções continuam sendo as mesmas. Não há tantas fontes de informação como parece. Eu penso que a imprensa tradicional vai sobreviver. Encontrarão uma maneira de entender e utilizar a Rede em seu próprio benefício. Mas, a qualidade continua diminuindo. A informação é hoje mais homogênea que nunca.
Não crê que as portas que a Rede abriu constituem uma ameaça para esse sistema de poderes de que você falava em Os guardiões da liberdade?
A internet é um sistema muito valioso, mas também está ameaçado. A próxima batalha é a luta pela net neutrality. O o à internet já é restringido porque é preciso pagar por ela, mas agora as empresas querem que seja mais fácil ar algumas páginas que outras, em detrimento daqueles que não podem pagar por estarem entre as de o rápido. É preciso evitar que isso ocorra.
Você é um dos maiores críticos da política internacional de seu país, mas, curiosamente, as suas opiniões raramente aparecem na imprensa norte-americana.
Os Estados Unidos provavelmente são o país com o maior grau de liberdade de expressão do mundo e o Estado tem capacidades muito limitadas para reprimi-la porque em 1964 aboliu o chamado Ato de Sedição. Mas a liberdade tem muitas dimensões e outras formas de controle, por exemplo, através do impacto da concentração de capital. Por isso você verá meus artigos em Johannesburgo, mas não no The New York Times.
A Europa acompanhou as eleições presidenciais com detalhe quase doentio. Por que acredita que os Estados Unidos continuam fascinando os europeus?
O mundo das relações internacionais é bastante parecido com a máfia. E se tens uma lojinha, te preocupa o que o padrinho pensa, porque é perigoso. A Europa se preocupa com o que o padrinho pensa, mas não acredito que realmente tenha acompanhado a campanha. Acompanhou tudo o que era superficial, sem entrar nos programas.
Acredita que a crise econômica poderia provocar uma crise de valores que levasse a uma mudança na forma de nos organizarmos social e politicamente?
Já está acontecendo, acredito que está abaixo da superfície, e a maioria das pessoas está começando a senti-la de forma instintiva. Na literatura popular do século XIX, um dos principais temas é que quem trabalha o moinho deveria ser seu proprietário. Há muitos escritos da revolução industrial de camponeses que dizem: “O sistema industrial tirou a nossa cultura, a nossa individualidade, nos converteu em ferramentas nas mãos de outros”. Essas coisas foram escritas por pessoas que nunca tinham ouvido falar do anarquismo ou do marxismo, mas o pensavam de forma instintiva. Esta crise volta a impulsionar essas ideias.
De acordo com os políticos, a maior ameaça para a segurança mundial já não é mais o terrorismo, mas a instabilidade provocada pela crise. Como interpreta essa mensagem?
Instabilidade tem um significado técnico: subordinação aos Estados Unidos. O que Obama fez para lutar contra a ameaça? Cercar-se de pessoas que contribuíram para a criação desta crise, como Timothy Geithner, Laurence Summers, os banqueiros, e encontrar uma fórmula para resgatar o sistema que eles dominam e controlam. Todos os milhões que o Ocidente está injetando para salvar as suas instituições financeiras não servem de nada diante de uma crise muito maior: há bilhões de pessoas à beira da morte por inanição. Essa é a crise verdadeiramente grave, e esse dinheiro não faz nada por eles. Curiosamente, não li isso em nenhum jornal norte-americano, mas num de Bangladesh. O que mais me surpreende, além disso, é que os jornalistas daqui nunca mencionem que todas as medidas tomadas por Obama são exatamente as contrárias àquelas recomendadas pelo Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) aos países pobres para sair de sua crise.
Acaba de fazer 80 anos; o que o faz continuar lutando?
Imagens como essa. [Chomsky indica um quadro pendurado na sua sala em que se vê o anjo exterminador ao lado do Cardeal Romero e seis intelectuais jesuítas assassinados em El Salvador nos anos 1980 pelos esquadrões da morte.] Um de meus fracassos é que nenhum norte-americano saiba o que significa esse quadro.
Alguma vez se sentiu como um Dom Quixote?
Não, porque os moinhos são reais e alguns inclusive abatemos. “A imprensa tradicional encontrará a forma de usar a Rede em seu benefício”. “A qualidade da informação continua diminuindo: é cada vez mais homogênea”.
(Ecodebate, 04/03/2009) publicado pelo IHU On-line [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta que envie um e-mail para [email protected] . O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.